Vamos prosseguir com a análise do poema.
Retomando, então, as características gerais do poema - que foram
exploradas no vídeo anterior.
"José" é um poema modernista composto por seis estrofes com
número variado de versos, em forma de redondilha menor, de cinco sílabas ou
pentassílabos, versos brancos, sem preocupação
com rimas. A redondilha menor agiliza a leitura, confere ao poema uma atmosfera
de agitação, de turbilhão, de pressa, de urgência para a solução da
situação-limite em que se encontra o eu lírico.
A pergunta-chave (E agora?), repetida várias vezes, inicia o
poema e já se tornou um refrão no imaginário do leitor. Ela aparece nas quatro
primeiras estrofes quando o eu lírico se dá conta de sua carência, de sua
solidão, diagnosticando a situação e está "caindo na real", como se diz
popularmente.
A partir da terceira estrofe o eu lírico inicia o processo de busca da resposta à indagação
(E agora?), quando esta é
colocada pela última vez no poema. Nas duas últimas estrofes já não acontece
mais a pergunta porque o eu lírico encontra-se, então, numa busca frenética para encontrar uma
resposta à sua pergunta, uma saída aquela situação-limite.
Vamos então proceder à análise das estrofes:
1a. estrofe:
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
Na primeira estrofe, o poeta inicia o questionamento, expondo a
ausência de referenciais habituais da existência humana e define José como o
homem comum que se encontra sem alento, sem visão, nas trevas, no frio da
solidão.
- "A festa acabou" ou seja, as fase feliz, as alegrias, se foram; a luz
apagou (José se encontra nas trevas, não consegue vislumbrar perspectivas de
futuro);
- "o povo sumiu" (José amarga o abandono, a solidão);
- "a noite esfriou"
(a tristeza é tanta que sugere sofrimento físico).
Vejam que os versos, em redondilha menor, permitem ao leitor
fazer várias leituras do tom da poesia; os versos apresentam um ritmo dançante
e, dependendo da leitura, sugerem até um toque de ironia nas perguntas,
seguindo o ritmo, mas, dependendo da leitura,
também esse ritmo já pode sugerir um toque de desespero ...
Observem que existe a possibilidade de o leitor participar
da elaboração do poema, inclusive quando o eu lírico pergunta: E agora, você? -
sugerindo uma questão ao próprio leitor.
Nos versos finais o poeta manifesta seu lirismo
pessoal, pois ele se inclui no contexto: "você que faz versos".
Assim, na primeira estrofe já se percebe que José é a figura
do homem individualizado, mas também tomado em seu sentido universal. Então, ele
significa não apenas o próprio poeta, mas cada um de nós, ou todos nós, em
conjunto, ou seja, toda a humanidade, valendo-se o eu-lírico, neste caso, da linguagem figurada - a metonímia
- a parte tomada pelo todo, traduzida aqui na ideia do indivíduo
pelo coletivo, o ser individual pelo ser universal, a unidade pela diversidade.
2a. estrofe
Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?
Nessa estrofe, o poeta utiliza o recurso da repetição enfática de termos e
expressões, manifestando sentimentos que denotam: exclusão, negação,
decepção, derrota, pessimismo. A estrofe inteira é dominada pela sensação de
perda com a repetição da preposição "sem" (que é uma partícula excludente) e do
advérbio de negação "não".
Nos três primeiros versos, com a repetição do verbo "estar" - que transmite a
ideia de "estado"-, e a repetição da preposição "sem", José encontra-se em estado
de exclusão, impedido de satisfazer suas necessidades psicoemocionais: sem mulher,
sem discurso, sem carinho.
- nos próximos três versos, surgem verbos de ação, porém eles estão no infinitivo, na forma
estática, não flexionada, onde o uso da expressão impeditiva "não pode" reforça o que lhe é
negado: exercer a ação denotativa desses verbos - que traduzem prazeres, vícios, necessidades
físicas e
fisiológicas de beber, fumar, cuspir.
Os próximos versos manifestam decepção, pessimismo:
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
O verso "o bonde não veio" localiza José num cenário cosmopolita, urbano.
Para o eu lírico, a noite - a escuridão, as trevas - estendeu-se e, por
conseguinte, tudo o mais falhou; há uma ruptura nos pilares cotidianos da
existência: o despertar de um novo dia, de um novo tempo, o
riso, a tão sonhada felicidade, a utopia - o sonho, o desejo de uma sociedade justa e
igualitária (e aqui o poeta remete sua inspiração ao ideal da sociedade utópica,
lembrando sempre que Drummond idealizava uma esquerda utópica).
Nessa estrofe, o poeta repete o verso "a
noite esfriou", único verso repetido além do principal "E agora, José?"
- o que confere significado especial à ideia de "noite" no poema, ou
melhor, reforça o significado de uma iminente era de trevas para o eu lírico.
Próximos versos sugerem a derrota, o desencanto:
"e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?"
O uso do pronome indefinido "tudo" repetidamente - com os verbos no pretérito
perfeito do indicativo - ou seja com a ação finalizada, reforça a sensação de derrota do eu-lírico diante das
fatalidades que lhe apresenta a existência.
3a. estrofe:
Até aqui, as estrofes significaram, principalmente, a constatação da
realidade para o eu lírico. Agora, ele passa à reflexão sobre o que significa
constatar essa realidade.
"E agora, José?
sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?"
A terceira estrofe é basicamente constituída sem verbos; é uma
estrofe essencialmente nominativa, metafórica, onde predominam substantivos e adjetivos que
definem - em meio ao questionamento-chave -, definem e questionam a própria humanidade de José através da
linguagem figurada:
(doce palavra) suas mensagens positivas, a capacidade de amar ,
(instante de febre) os momentos de inspiração
criativa , (gula e jejum) os tempos de fartura e escassez ,
(biblioteca) o
conhecimento ,
(lavra de ouro) as riquezas, o meio de vida ,
(terno de vidro) a vaidade, suas fragilidades ,
(incoerência, ódio) seu lado negativista.
Todo esse rol de características que definem sua humanidade
é questionado: de que tudo isso vale agora, ou - o que será de tudo isso agora?
Observem que, na evocação da humanidade de José, não há referência explícita à religiosidade.
Quem assistiu ao vídeo anterior, à primeira parte desta análise, deve se lembrar
da abordagem sobre o lirismo, o subjetivismo do poeta, no poema, quando surge a
questão da teogonia que vai aparecer na última estrofe.
Relembrando, teogonia é um conceito ligado à criação dos deuses.
Drummond tinha uma relação instigante com a ideia de Deus. Embora tivesse sido
criado na religião católica, para ser - como o poeta mesmo dizia -, "temente a Deus", ele se
questionava: Se Deus criou o mundo, quem criou Deus? Esse é um
questionamento existencialista.
Para o existencialista, as soluções de seus
conflitos resultam de suas próprias lutas, não de soluções mágicas, advindas de
poderes divinos. No existencialismo, a existência precede a essência; o concreto
precede o abstrato, não é um deus que gera o homem, mas o homem que gera seus
deuses. No poema, não houve teogonia para José, nenhuma geração de divindades
para socorrê-lo, nenhuma intervenção mística no seu momento de desespero, como
seria
comum entre homens de fé - que inclusive não era exatamente esse o perfil de Drummond, pois
o poeta
preferia definir-se como agnóstico.
Assim, como dito anteriomente, na evocação da humanidade de José, não há referência explícita à religiosidade.
Talvez, numa
observação mais acurada, poder-se-ia localizar algum indício desse fator no
verso "sua incoerência". Todo ser humano tem suas incoerências, em
determinados aspectos. O próprio
Drummond, embora definindo-se como agnóstico, costumava usar a expressão
"Meu Deus do Céu!" em diversas situações. Ele procurava justificar
essa "incoerência" de forma
um tanto divertida e irônica, dizendo: "É apenas um vício de linguagem."
4a. estrofe:
"Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?"
Até aqui, o eu lírico passou pela fase da constatação, depois
pela reflexão, agora passa à fase da busca de solução, manifestada através da
repetição do verbo "querer", exprimindo o desejo de José: quer achar uma saída,
quer fugir e vale como saída até morrer.
José quer fugir, busca desesperadamente a saída; "com a chave na mão",
ou seja, ele tem os recursos e a vontade, mas é impedido pois não há como
aplicá-los;
José - que vive num meio cosmopolita, vive na cidade - busca um retorno às origens no
interior (Minas) mas não reconhece mais esse interior, não o encontra em si
mesmo; nesse ponto, destaca-se o lirismo do poeta, lembrando que Drummond era
mineiro, da cidade de Itabira.
Enfim, o eu lírico se vê tão impotente que tem dificuldade até para encontrar uma forma de
morrer.
5a. estrofe:
"Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse…
Mas você não morre,
você é duro, José!"
Vimos que até aqui o eu lírico passou pela fase da constatação, depois
pela reflexão, pela busca de solução, e agora entra na fase das possibilidades.
Ao contrário da estrofe 3 que era uma estrofe nominativa, com predominância de
substantivos, esta é uma estrofe plena de verbos, com ênfase no sujeito - a
repetição o pronome "você" -
mas não se trata de ações realizadas; o uso do subjuntivo no imperfeito sugere alternativas,
hipóteses, possibilidades de
solução para sua situação-limite, porém o significado dos verbos determina uma
redução gradativa dessas possibilidades .
Os três primeiros versos apresentam
verbos que veiculam sonoridade: gritar, gemer, tocar música. Soam como o grito
de socorro que começa estridente (gritar) e vai se degradando, diminuindo em
intensidade, até silenciar nos verbos seguintes: dormir,
cansar e finalmente morrer, sugerindo que José está "entregando os pontos"
, mas... não. Só que não... O uso das reticências reforça que as ações
possíveis não estão finitas. Ele não morre, José teima em viver,
agarra-se à existência.
José não morre, não consegue morrer e o poema promove uma espécie de redenção do eu lírico, a
admissão de uma justificativa
existencial: ele não morre porque é duro, é teimoso, e, mesmo no abandono, mesmo
à revelia, teima em continuar vivendo. É a paráfrase do homem na luta pela
sobrevivência a qualquer custo, mesmo diante das mínimas possibilidades de
êxito, mesmo diante da iminente hipótese do suicídio. Ele se agarra à
existência.
6a. estrofe:
"Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?”
Após passar pelas fases de constatação, reflexão, busca de solução,
possibilidades, o eu lírico chega à fase de decisão, de resposta à sua
indagação: E agora?
Novamente a repetição da partícula excludente "sem", a sensação de solidão, da noite, do
escuro, das trevas, do abandono, da falta de apoio dos amigos, da família,
da sociedade (sem parede nua para se encostar).
Anteriormente, nas primeiras estrofes, a partícula "sem" expunha a
falta de seus referenciais cotidianos; agora, trata-se da falta de apoio para a
solução da situação-problema, ou seja, é a continuidade da falta, da carência -
o que determina a um estado de solidão permanente.
Ao final, destaca-se o desejo pela fuga em busca da liberdade
("sem cavalo preto que fuja a galope"), mas o que José consegue é apenas
marchar. A marcha em vez do galope: é uma solução alternativa, uma forma de entrega, de conformismo, diante das
dificuldades da existência. De repente, da impossibilidade do galope ele se
conforma em marchar; é o caminhar automatizado, remetendo aos mecanicismos da
vida em sociedade.
Já que não consegue ultrapassar a situação-limite em que se
encontra, ele se entrega à segurança de uma existência acomodada; faz uso de uma
solução prática, imediatista, mas que se revela não uma solução definitiva mas, sim, uma espécie de trégua em sua crise existencial, pois ele segue em frente,
aparentemente acomodado, porém sempre perturbado pelo questionamento interior:
para onde? No fundo, José ainda está questionando, buscando, mas em um ritmo
desacelerado.
Essa é uma visão estrita do homem em seu conflito existencial, mas, num sentido
lato, evoca os tempos beligerantes, terríveis, então vigentes em 1942, com o
Brasil sob ditadura e o mundo em guerra, onde o
combatente (o homem) marchava para o desconhecido assim como a humanidade
marchava para um destino indefinido. Marchava, mas não desistia - e o fazia com uma indagação: "Para onde?"
Para onde caminhas, José? E para onde caminha a humanidade?
É também um vislumbre de esperança, mas não da esperança como
crença em
fórmulas mágicas para solução dos problemas, mas, sim, de uma esperança que deriva
do
fortalecimento da autoconfiança, da resistência humana quando tudo parece perdido. É a saga do existencialista.
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- por Oriza Martins - portal Galera Dez
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